quarta-feira, 5 de janeiro de 2022

A Postura




 
Kumiko Hara
Japanese actress and model







Este livro é incomodo porque arrebata ao Ser Humano a possibilidade de recorrer à doença como um álibi para a resolução dos seus problemas pendentes. Propomo-nos demonstrar que o doente não é a vítima inocente dos erros da natureza, mas antes o seu próprio carrasco. Através desta afirmação não nos referimos à contaminação do meio ambiente, aos males da civilização, à vida insalubre nem a outros quantos vilãos do género, pretendendo antes evidenciar o aspecto metafísico da doença. Encarados por esse prisma, os sintomas surgem como manifestações físicas de conflitos psíquicos e a sua mensagem pode desvendar o problema de cada paciente.




A POSTURA


Quando falamos da postura de uma pessoa não transparece claramente, pela simples palavra, se nos referimos ao seu aspecto corporal ou moral. De qualquer das formas, esta ambivalência semântica não deve conduzir a confusões na medida em que a postura exterior é o reflexo da postura interior. O interno sempre se reflete no externo. Assim falamos, por exemplo, de uma pessoa reta, na maior parte das vezes sem nos darmos conta sequer de que a palavra retidão descreve uma atitude corporal que teve consequências capitais na história da humanidade. Um animal não é susceptível de ser reto porque ainda não se ergueu.

Em tempos remotos o Ser Humano deu o passo transcendente de se erguer e dirigir o olhar para cima, para o céu: conquistou assim a oportunidade de se converter em Deus e, simultaneamente, desafiou o perigo de se julgar Deus. O perigo e a oportunidade de se ter erguido refletem-se também no plano corporal. As partes brandas do corpo, que os quadrúpedes mantêm bem protegidas, ficaram desprotegidas no Homem. Esta falta de proteção e a maior vulnerabilidade que daí advém vai de par com a virtude polar de uma maior abertura e receptividade. É a coluna vertebral, em particular, que nos permite manter uma postura reta. É ela que confere verticalidade, mobilidade, equilíbrio e flexibilidade ao Ser Humano. A coluna tem a forma de um S duplo e atua conforme o princípio da amortização. Aquilo que lhe confere flexibilidade e mobilidade é a polaridade vértebras duras/discos moles. Dizíamos nós que as posturas interna e externa se correspondem e que essa analogia se espelha num grande número de expressões idiomáticas: há pessoas retas e coerentes e pessoas que se deixam vergar; todos conhecemos pessoas rígidas e casmurras e pessoas que não se importam de gatinhar e se deixam facilmente arrastar; a outros não só lhes falta atitude, mas também um apoio. Mas é possível, também, influenciar e modificar artificialmente a atitude externa a fim de simular firmeza interna.

É nesse sentido que os pais incitam os seus filhos gritando-lhes «põe-te direito!», «será que não és capaz de manter as costas direitas?», e assim se entra no jogo da hipocrisia.

Anos mais tarde, é o exército que ordenará aos seus soldados «Sentido!». Aí a situação torna-se grotesca. O soldado é forçado a manter o corpo direito ao mesmo tempo que é obrigado a vergar-se interiormente. Desde o princípio dos tempos o exército sempre se empenhou em cultivar a firmeza exterior apesar de que, do ponto de vista estratégico, tal se afigure uma idiotice. Durante o combate de nada adianta marchar em fila ou ficar em parada. Cultiva-se a firmeza exterior apenas para desfazer a correspondência natural entre firmeza interior e firmeza exterior. A verdadeira instabilidade interior dos soldados costuma, então, vir ao de cima nos momentos de lazer, após uma vitória ou em ocasiões similares. Os guerrilheiros por sua vez não cultivam a postura marcial mas possuem uma identificação íntima com a missão que desempenham. A eficiência aumenta consideravelmente graças à firmeza interior e diminui com a simulação de uma firmeza artificial. Basta comparar a postura do soldado, com as suas articulações rígidas, e a postura do vaqueiro que jamais sacrificaria a sua liberdade de movimentos bloqueando as próprias articulações. Essa atitude aberta na qual o indivíduo se situa no seu próprio centro encontramo-la também no Tai-Chi. (Aqui a palavra utilizada no original é hartnàckig, que se pode traduzir literalmente por «pescoço duro».)

Toda a postura que não reflita a essência interior de uma pessoa afigurasse-nos de imediato forçada. Por outro lado, podemos reconhecer facilmente uma pessoa através da sua postura natural. Se alguma doença a obrigar a adoptar uma postura que nunca assumiria voluntariamente, a postura em questão revela-nos uma atitude interna que não foi vivida e indica-nos aquilo contra o qual essa pessoa se rebela. Ao observarmos alguém temos de distinguir se ela se identifica com a sua postura ou se adoptou uma postura forçada. No primeiro caso, a postura reflete uma identidade consciente. No segundo caso, na rigidez da postura manifesta-se uma zona de sombra que jamais seria aceite voluntariamente. Assim, o indivíduo que caminha pelo mundo de cabeça erguida revela uma certa inacessibilidade, orgulho, altivez e retidão. Semelhante pessoa identifica-se perfeitamente com todas essas qualidades - nunca as negaria.

Algo de bem diferente acontece, por exemplo, no caso da doença de Bechterew, em virtude da qual a coluna vertebral adquire a forma típica de uma cana de bambu. Nesse caso, um egocentrismo não assumido conscientemente pelo doente e uma falta de flexibilidade não reconhecida manifestam-se no plano somático. Com o tempo a coluna vertebral fica calcificada de cima a baixo, as costas enrijecem e a cabeça inclina-se para a frente devido à inversão ou eliminação da sinuosidade da coluna vertebral. O doente não tem outro remédio senão admitir que na realidade se tornou rígido e inflexível. A corcunda exprime uma problemática semelhante: a corcunda espelha uma humildade não assumida de modo consciente.




LIVRO: A Doença Como Caminho, Thorwald Dethlefsen e Rúdiger Dahlke